terça-feira, 11 de outubro de 2011






A FAZEDORA DE ANJOS









a morte daquelas crianças foi o que fez toda a diferença.
prestes a fazer o juramento de hipócrates, penso nos sacrifícios que mãe (e tantas outras) fez para esse momento acontecer.
eu morava com pai e mãe em um terreno onde hoje é um dos bairros de itaquera.
pai era vigia na cidade e para mãe cabia deixar a tapera onde morávamos, habitável.
tarefa árdua quando não tem água e luz. 
um dia pai não voltou para casa. e no outro também. e no outro.
dado o tempo, mãe saiu de manhã dizendo ir buscar pai.
no mesmo dia mãe voltou e contou que pai formou nova família. não mais voltaria.
eu era pequena e não estranhei.
em alguns meses mãe disse que nós duas iriamos embora do terreno por não mais poder comer comida de vizinho ou de caderneta de venda.
íamos para alagoas, onde mãe tinha pais e confiava. mas a vida muda já na rodoviária.
os parcos cruzeiros que os vizinhos arrecadaram e deram para mãe ir, se foram por um talho de gilete na bolsa dela.
mãe ficou pálida, mas não deu palavra. um homem que passava viu o rasgo na bolsa e na cara de mãe.
falou cuidados e deu dinheiro para passagens. não tanto para alagoas.
desembarcamos em uma pensão para mulheres no centro de santos.
mãe fazia serviços para a senhoria quando acabou o soldo da primeira semana de hospedagem.
ela era velha e loira. falava enrolado e fumava salem. lá também moravam oito mulheres que nem sempre eram as mesmas.
logo mãe arrumou fazer limpeza em casa de outros. eu ficava na pensão aos meus cuidados, com quem lá estivesse.
lá era bom brincar com as crianças da rua e no quintal arborizado da pensão. as mulheres me riam e davam doces.
mãe também era boa com elas. quando estava na pensão lavava roupa, olhava outras crianças e tratava delas quando adoeciam.
mãe de mãe era parteira e benzedeira em alagoas. mãe tinha a natureza igual e administrava chás e unguentos para quem precisava.
vai ano, chega um pacote para mãe na pensão. eram livros. 
mãe tinha recortado a foto novela da madame e se inscrito no curso de enfermagem do instituto universal brasileiro.
fiquei de contentamento sonhando historia de sucesso pra mãe, igual eu via nos quadrinhos do gibi que eu lia.
mas mãe não recebeu o certificado porque não tinha dinheiro para quarta parcela em diante e o troco daquelas ousadias foram os doze cadernos do primeiro módulo do curso que não seriam devolvidos. eram as coisas mais valiosas do nosso quarto de pensão.
mãe pôs em uma prateleira onde nosso braço alcançava. ela sabia que eu tinha bons modos e cuidava. ela que fez.
as figuras do caderno me atraiam deveras; ossos, músculos, orgãos... tudo era diferente do pateta.
a partir dessa feita, mãe passou a ficar muito mais tempo em casa escutando as mulheres e administrando sua sabedoria que tinha sido ampliada pelos livros do iub.
eu ajudava mãe quando elas vinham. mãe nunca me mandou sair. mãe só cuidava de mulheres.
elas chegavam com seus respectivos sintomas e mãe as sarava com pomadas e garrafadas  que ela preparava com varias ervas da serra e por isso recebia o que elas podiam dar. o entra e sai da pensão aumentou muito.
logo mãe pode alugar outro quarto no casarão. e era nesse quarto que ela realizava a 'tira do bebê'.
todo dia de manhã, vinha mulher de cara triste para aquele quarto. 
eu ajudava mãe a tirar os brotinhos (é assim que eu penso neles. até hoje) das mulheres.
elas nada sentiam, dado o chá que que mãe mandava elas tomarem semana antes.
vi alguns até de braçinho. eu só lembrava dos desenhos do caderno. fases da gestação.
assim foi por décadas.
e toda a família santista, rica e pobre, tinha em suas fileiras uma mulher atendida por mãe e a respeitavam como 'a bruxa do marapé'.
certa vez,eu já adolescente, um pai de moça, agradecido, compromete-se a pagar escola que eu quisesse.
cuidei disso também.
hoje, mãe bem velinha, me vê virar anjo.
formei-me obstetra.






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