quarta-feira, 31 de agosto de 2011










sabe um cachorro?
um cachorro quando se entrega, deita, fica de costas, expõe a barriga, encolhe as patas, e espera.
durante algum tempo ele faz só isso; espera. 
espera a mordida na parte mais macia da barriga.
se a mordida não vem, uma ponta de esperança, mesmo que indesejada, aflora. 
com essa esperança revivida, um incômodo instinto de sobrevivência se instala nas vontades do cachorro que, resignado, já esperava o desfecho óbvio.
voltar a acreditar é doloroso, principalmente quando você continua lá deitado, com a barriga exposta...






segunda-feira, 29 de agosto de 2011
















naquela manhã, coriolano estava adiantado. 
depois de dois anos desempregado, ele ia entrar as oito e meia. 
as sete e cinquenta já tinha se banhado, penteado o cabelo e já estava até vestido, sentado no sofá da sala.
ligou o som, ascendeu um cigarro e, voltando-se a sentar, pensou o que assinalava esse dia na trajetória que até aqui tinha tomado.
chegou a conclusão que não representava lá muita coisa, já que continuaria duro como antes.
ele sim tinha que representar o papel que era imposto à massa. como ele não era filho de barão e nem tinha tino pra ladrão, não podia ser diferente.
esse devaneio durou o instante do cigarro que, depois de incinerado, serviu de ampulheta para decretar a sua saida.
lenine calou-se naquela casa e coriolano saiu porta a fora, pronto para o que desse e viesse.
caminhada de vinte minutos e já estava lá. emprego novo. gente nova. velhas expectativas.
bem sabia ele que dali a três meses já estaria achando tudo aquilo um saco. 
lembrou-se do pai: "tu és um mandrião!"
não era bem assim. o que poderia coriolano fazer se, como em tudo na sua vida, o tempo se mostrava inexorável na ação de deteriorar os seus melhores anceios?
não era assim na natureza? nasce, cresce, morre. nada é perene. mas dessa vez ia ser diferente.
coriolano estava disposto a representar o seu papel sem maiores delongas. 
continuaria sem dinheiro, mais ao menos teria para ir quando acordasse de manhã. 
devidamente orientado e encrachazado, subiu ao departamento onde iria passar as próximas oito horas. ja tinha familiaridade com o artigo que ia cambiar.
sem sobressaltos até às duas e quarenta, quando chegou lucia, a garota do turno da tarde. 
viu no crachá o nome já citado pelos colegas.
manejou a cabeça para a beldade. ela se dirigiu a ele: 
'oi. sou lucia. espero que você goste de trabalhar com a gente. a equipe é bacana. eu já tinha ouvido falar de você...'
'bem ou mal?'
'ouvi dizer que você gosta de tudo isso...' apontou o ambiente a sua volta, onde estava incluído ela.
'é...'
a chegada de um terceiro, deu espaço para a mente de coriolano voltar do terreno tesudo que tinha entrado. 
se afastou e fingiu arrumar uma prateleira. 'suculenta pra caralho!'
dados os dias, aquela premissa corroía coriolano. 
dezenove aninhos. estudando comunicação. simpática. inteligente. toda engajada filosoficamente. 
reclamava das noites que passava sozinha em casa sem ter nada pra fazer. familia no interior.
'é uma garrfa de vinho, fuminho e filminho. acordo cedo pra facul, sabe?'
entendia do jogo e reconheceu em coriolano um jogador. 
de inicio, coriolano deu trela. 
fazia trocadilhos e falava coisas espirituosas só para vê-la sorrir e sentir a mão dela pousar em seu ombro.
as vezes no braço. um semi-abraço.
coriolano sentia frissons. já sabia onde aquilo ia dar. primeiramente num bar. segundamente: a alcova. e depois?
teria ele que criar um departamento na sua vida para acolher tão delicada passarinha? 
como essa trepada implicaria no emprego? 
e a flavia?
mediu suas possibilidades. 
naquela manhã chegou atrasado. parou de graçinhas com lúcia.
coriolano estava mudando.





sexta-feira, 26 de agosto de 2011





A PELEJA DO PADRE PRA VENDER A IGREJA











a história que narro aqui
não é invenção minha.
claro; aumentei um pouco...
mas ela não foge da linha.
vou contar porque foi vendida
a igreja de piraporinha.

o imóvel em questão
sempre esteve ali; imponente.
e acredito que foi visitado
por muitos aqui presentes.
hoje o povo fica intrigado:
'porque sumiu de repente?'

o padre daquela paróquia
era um tipo espevitado.
bebia uma canjebrina.
fumava até baseado.
e sempre rezava a missa
de um jeito alterado.

só pra ilustrar a história
vou aqui rememorar
a vez que ele falou que jesus
nasceu em belém do pará.
e que herodes era um safado
que merecia apanhar.

era mesmo um padre doidão
que falava o que bem queria.
às vezes enchia a cara
com o vinho da sacristia.
e uma vez disse que deus
traiu José com maria.

a verdade é que o padre
ia até no guarapirão.
e foi lá que ele se meteu
numa puta confusão
quando cobiçou uma mulher
que dançava lá no salão.

o padre além de doidão
era também bem gaiato.
quando viu a mulher dançando
pensou logo no ato;
"essa morena-rôxa
vô batizar no meu quarto."

mirou a morena dançando
e foi lá encarar a treta.
chegou na mulher e sem dó
mandou logo essa letra:
"tô doido pra dançar contigo
esse forró do calcinha preta."

a mulher logo pensou:
"vou papar esse otário!"
ela já conhecia o padre
de outros itinerário.
e tava muito disposta
a dar o golpe no vigário.

ela falou: "Eu quero
dançar com você o forró."
os dois, atracados na pista,
parecia até um nó.
e até o dia clarear
caíram no forrobodó.

quando as luzes ascenderam
e o DJ falou a todos: "vaza!!!"
o padre para cima da nêga
arrastou a suas asas.
chegou na bonita e falou:
"vamos lá pra minha casa."

a mulher pensou: "é agora
que eu faço a minha feira."
a danada ainda ficou
dando uma de faceira.
mas logo foram pra igreja
e furunfaram a noite inteira.

passada a ressaca dos dois
a vida seguiu como antes.
o padre aprontando das suas
nem ligava pr´os falantes.
mas o caldo entornou mesmo
quando apareceu a gestante.

e foi no meio da missa
que deu-se a anunciação.
a mulher era pimenta
e armou um barraco do cão.
dizia que queria uma casa,
um carro e ainda pensão.

o padre pensou c´os botão:
"agora a casa caiu!
que mulher desgranhenta.
vá pra puta que pariu!
ou Deus me abandonou
ou ele nunca existiu."

depois do DNA feito
e a paternidade comprovada,
a mulher meteu um processo
pedindo uma puta bolada;
eis porque a casa de deus
está sendo comercializada.

falou Augusto, o poeta
(também tido como rufião).
trazendo para os presentes
mais uma obra de ficção
que pra vir pro mundo real
não tá tão difícil, não...





quinta-feira, 25 de agosto de 2011




MULHER-MARACAJÁ











ai dona boa...
que saudade 
da sua cara
de leoa.

do teu cheiro almíscar
que põe meu pau teso
e me deixa louco
de desejo
de jogar em ti
o meu peso.
de te montar.

que  vontade 
de ver 
seu olho verde
vertendo verdade
e sapiência.


peço clemência!
não aguento sua ausência.
me bote 
ao alcance
da sua mão
do seu colchão
pra que entre 
suas coxas
tu sintas
a minha paixão.

pergunta pro povo da rua
se eu não fico aflito
quando não fito
a cara sua
quando não te vejo nua.

insinua que me quer,
que  num lance bem bonito
te faço minha mulher.














gosto  muito dessa poesia.
não sei porque ela  não tava aqui ainda....








morreu ontem,
com muita dignidade,
a puta mais velha da cidade.
 
da sua idade
não estou bem certo,
mas sei que dos oitenta
chegou perto.
 
veio a morte
pela parede fria
do seu quarto,
onde jazia
um quadro de são jorge.
 
usava um antigo
vestido vermelho,
mesma cor do batom
na boca,
que nunca abriu
pra falar mal do governo.
 
por esposas iradas,
mas de uma vez,
foi desafiada.
sofreu sevícias
na mão dos homens
da policia.
 
um cliente muito terno,
que escrevia poesias
em um caderno,
lhe jurou amor eterno.
deu jóia,
roupa cara
comida para o sustento...
mas ela fugiu
quando ele propôs a ela
um casamento.
 
ela não se contentava
com paixões reles.
não queria ser tratada
igual as outras mulheres.
que se vendem para os maridos,
pr´os patrões e para os filhos;
em suas sinas resignadas...
a troco de nada!
 
preferiu os bregas,
o parque do ibirapuera
e idas ocasionais a são vicente.
 
sempre achou deprimente
visitar o filho no domingo.
macarrão
faustão
e a nora tida como santa.
 
espanta
esse critério
que define
o que é
e o que não é
sério.
a puta mais velha da cidade...
 
morreu sem alarde
sem companhia.
morreu de pneumonia;
mas não houve melancolia
e nem luto.
 
com sua morte anunciada,
as putas os putos
largaram as calçadas
do Trianom
e foram fazer folia
lá longe, na periferia,
em que ela morava.
foi um grande frissom!!!
 
teve festa com seresta
com samba e com cachaça.
veio criança, velho,politico...
e até o padre, sumido,
deu o ar da sua graça.
 
todos celebraram a passagem
daquela dama fina
que um dia
saiu menina
do raio da silibrina.
e agora é canonizada
a Nossa Senhora da Esquina.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011










açúcar, pinga, limão
cama,  mulher, amor
tela, tinta, cor
praia, sol e calção

escola , aluno, carteira
maconha, filme, sofá
pia, louça, lavar
domingo, pastel e feira

peixe, dendê,  muqueca
radio, letra, melodia
lápis, papel, poesia
criança, bola e boneca

pipa, linha, vento
cabeça, cabelo, trança
festa, musica, dança
alma, vida e pensamento




quarta-feira, 17 de agosto de 2011

meus filhos estão crescendo e me desobedecendo. eu já sabia que isso mais cedo ou mais tarde ia acontecer.
amo esses dois e eles sabem que faço qualquer coisa para que eles se contentem em estar em minha companhia.
mas tenho percebido que eles extrapolam nessa minha disposição e acham que eu sou o amiguinho da escola deles com quem eles zoam e fazem as piadas mais sacanas possíveis. crianças são cruéis por inocência.
e não é por falta de conversa, não...
davi persegue ágata como um pequeno t-rex. xinga de baixinha, atravessa a conversa dela só para vê-la irritada, quer as coisas que ela tá na mão e outras intransigências que não condiz com o que eu passo pra eles.
ai é aquela peleja: "paaaai, ó u davi." ai eu falo: "paaara davi!" e ele: "tô fazendo nada!".
quem tem mais de uma criança pequena sabe como é...
e esse ciclo rouba a brisa de um encontro já tão demorado que devia ser bacana para os três.
dentro dessa percepção, vou chamar eles na xinxa e impor certos limites que servirão para eles mesmos.
são eles que tem que se comportar ao meu agrado. e não o contrario. eu também sei ser ingrato.
não faz muito tempo (até porque não sou tão velho assim), eu que insistisse a um olhar mais severo de meu pai.
já sabia a reação da minha ação. pé de galinha nunca matou pinto...










CARLINHOS

                                                                                                                            
eaê meu pai?
como vai?
eu tô aqui nessa cidade
vendo muita insanidade
e morrendo de saudade
daquelas tardes
de cerveja e jornal;
aquilo era tão legal...
e eu não soube aproveitar.

fico imaginando você aí
perto do mar
e me vem na mente
tanta coisa que eu queria falar...

mas como usar palavras
arraigadas no fundo da alma?
precisa de muita calma.
e mais ainda; compreensão.
foi isso que você sempre fez, não?

com o seu jeito terno,
já me tirou do inferno.
com seu jeito gaiato,
desapertou o meu sapato.
com seu jeito bonachão,
trouxe paz pro meu coração....

aflito!
fico assim; não acredito!
nas barreiras que o mundo
impôs ao nosso roteiro.
das virtudes,
não sou o primeiro.
mas você sabe quais são elas...

e por ser como eu sou,
eu tenho as minhas sequelas.
e uma delas
é a saudade que sinto de ti.
de mim também sentes; bem sei.

desculpe se o envergonhei.
não tem um dia em que eu não remoa
aquela data malfadada... 

mas maior do que a dor
é o amor que sinto pelo senhor.
um dia chegaremos lá                                                                                   
e as ideías vão se encontrar.
somos um só ser.
você vai ver!

quarta-feira, 10 de agosto de 2011






difícil é não ver fogos
de artificio na mente
quando a gente
se entrelaça.

dá-se a graça
do gozo fabuloso
que cobre a tarde,
deixando lá fora
o alerde da cidade.

junto de ti aflora
a melhora que quero.
o esmero do seu carinho
me põe em ninho de paz,
onde me alinho contra
as faltas brutais
que você me faz.

cartão não!
de amarelo
só quero a lembrança
do short que tu usava
quando me tornei 
seu consorte.

me ajuda a viver!
venha ao anoitecer
para eu ficar em você.
faça dessas minhas horas
glórias orgásticas
que a matemática não da conta.

se puder, traga uma ponta...
de esperança em não ter final.
me deixa criança
em noite de natal,
onde te quero
constantemente
presente.



terça-feira, 9 de agosto de 2011


MISANTROPO APAIXONADO






você sabe que eu gosto muitíssimo de você? sabe?
eu devia dizer com muito mais frequência estas palavras boazinhas,
eu sei que elas são muito importantes para você.
eu é que sou pouco talentoso nesse área.
tenho lá meus momentos de brilho,
mas nos intervalos entre eles me sinto pálido, insignificante e ornamental
com minha choramingada particular para o seu onanismo sentimental.
vou tentar melhorar, viu? você é muito boa.
eu gosto muitíssimo, muitíssimo mesmo de você, tá?





segunda-feira, 8 de agosto de 2011







USO MESMO!





Neste sábado pela manhã, a tropa de elite do mau humor, fortemente armada, conseguiu prender o poeta Augusto, 44, que estava sorrindo, sem autorização, deliberadamente em mais uma manhã terrivelmente ensolarada.
Acusado de idiota, o poeta foi enquadrado na lei nº 777, denominada “Tristeza não tem fim” e imediatamente levado ao Departamento das Caras Amarradas, no Centro das Mágoas, em São Paulo.
O poeta Augusto tinha acabado de acordar e saiu para uma pequena caminhada, cheio de alegria, conforme testemunhas, e começou a sorrir para todos que estavam em sentido contrário, literalmente. Aí foi abordado por uma viatura que fazia ronda no local.
Antes de fugir, trocou olhares sem maldades com a tropa do mau humor e saiu em disparada pela Rua Esperança. Depois da perseguição com disparos de insultos de grosso calibre (não por parte do poeta, que fique bem claro), ele foi preso em flagrante, ainda com duas ou três risadas que iria usar mais tarde.
Ao ser interrogado, Augusto não entregou quem lhe havia fornecido a alegria, e ainda revelou, de forma risonha e irônica, que ele era o dono da boca.
O mau humor confirmou sua prisão temporária por 30 dias, e que no final da tarde o poeta seria transferido para o presídio de solidão máxima, enquanto aguarda o julgamento.
O secretário-geral das mesquinharias, coronel José Bicudo Guerra, 98, informou em entrevista coletiva que o governo vai investir pesado na luta contra o bom humor, e que dentro de dois ou três anos vai erradicar a alegria do país.
Da redação: Pessoinha da Cruz Pesada

SÉRGIO VAZ















'porque razão a senhora quer se separar?'
'não há amor de espécie alguma no casamento.'
'é isso o seu motivo?'
'sim.'
'mas a senhora esteve casada uma enormidade de tempo, não? 
 sempre foi assim desse jeito ou...'
'sempre tem sido assim, de fato.'
'e agora que as crianças deixaram o lar a senhora quer o rompimento. está certo assim?'
'meu marido é muito diligente. não tenho queixa nenhuma a fazer contra ele. é bom e ordeiro. 
 tem sido um ótimo pai. nos interessamos, os dois, por música e somos membros da    associação de música  de câmara.  quer dizer, nós tocamos música.'
'mas me parece tudo muito bem.'
'sim, parece, mas não há amor nenhum no casamento. nunca houve.
'desculpe uma pergunta; a senhora, eventualmente, encontrou um outro homem?
'não, isso não.'
'e o seu marido?'
'ele, que eu saiba, nunca me enganou.
'com a separação, a senhora não ficará bastante só?'
'decerto, acredito que sim. mas eu prefiro essa solidão a viver num casamento sem amor.'
'eu gostaria que a senhora falasse como é que se exprime essa falta de amor.'
'ela não se exprime de jeito nenhum.'
'então, não compreendo.'
'sim. e não é fácil explicar...'


sexta-feira, 5 de agosto de 2011




todos sonham, meu amor....
não há como se opor.
e é nossa obrigação
trazer o sonho ao nosso favor.

siga sem olhar aquém
e sem prejudicar ninguém,
que o sonho vem.

não vá gastando suas fichas
em apostas mixas.
o mundo gira!
se correr demais atras,
o sonho se distancia mais...
fazer a coisa certa
as vezes é uma merda!
fica na sua.
deixa fluir.


mas o que eu tô fazendo aqui,
dando uma de grão vizir?
sendo que a muito tempo
eu só sirvo de mal exemplo...

tenha calma.
fique em paz com a sua alma.

queria eu, com a minha manha,
lhe fazer essa façanha.
mas essa parada
é contigo.
pois sou de trazer perigo
e confusão.

ouça bem seu coração
e os latidos desse cão:
só me resta na situação
incendiar-lhe de paixão.

não vou levá-la na garupa
(nunca diga nunca)
vou fincar-lhe o pé no chão.
não chora, não.
esses sentimentos
vem e vão.

eu tô do seu lado 
pra qualquer parada.
te quero brava!
te quero amiga, enamorada.


(chuva danada;
pra de sussurrar
que é do meu lado
que ela tem que tá...)



quarta-feira, 3 de agosto de 2011



ACOSTUMAMENTOS








minha mãe sempre foi explosiva e intolerante (contava o velho na fila do banco) e mais de uma vez paguei pelo gênio dela. 
na infância, os moleques da minha rua não só evitavam ir na minha casa como também não eram bem vindo quando minha mãe estava lá.  
ela fechava o cenho, media a visita de cima a baixo e não falava nada. nem respondia aos bons dias.
quando ela passou a distinguir certos odores (mamãe sempre foi boa de faro) na rapaziada, esculhambava: ‘você não vai sair daqui com esse fumeta emaconhado!” 
não saia. evadia o desavisado perplexo.  
estive com mamãe em muitos momentos de conflito. 
eu estava com ela na vez em que passaram com um carrinho na feira bem em cima do seu pé. 
outra feita, fui com ela cobrar um inquilino que ficou devendo meses de conta d água para ela. soltava o verbo.
um dia minha mãe emprestou a panela de pressão para a dona antonieta pela ultima vez.
dona antonieta era a vizinha de muro que já estava lá, dou outro lado, quando fomos morar naquela casa que meu pai ergueu. era tudo mato...
e dona antonieta se encantou pelo tchuf-tchuf da panela de pressão. botava a carinha no muro e pedia a panela emprestada para fazer um feijão, cozinhar uma batata, pasmem,  fazer peixe. minha mãe sempre emprestava com recomendações, mas, essa ultima vez, a panela voltou com a borracha toda arregaçada, totalmente distorcida e sem encaixar na tampa.
e dona antonieta voltou ao muro, dias depois, pedindo a mesma.
ouviu uma descompostura de minha mãe: relaxada, porca, folgada...
não lembro bem os termos. a verdade é que nem lembro se isso aconteceu.
só sei que a panela foi negada e dali se fez uma inimizade. 
inimizade tal que todos de minha casa foram contagiados pela raiva de minha mãe nunca mais dirigimos a palavra para a dona antonieta. 
atravessávamos a rua quando a víamos. dona antonieta não deixou por menos e, bastava ouvir o tilintar dos pratos e dos talheres sendo postos para o café da manhã que ela começava a escarrar durante os exatos dez minutos, mais ou menos, em que tomávamos nossa vitamina de abacate com pães e manteiga.
escarrava. escarrava. CRRRRRRRRRRRRRR. alto.
estranhamos nos primeiros dias (não lembro).
indignamo-nos nos seguintes.
xingamos alto também, no decorrer dos meses em que aquilo prosseguia.
acostumamos-nos.
aquele ritual matinal durou anos sem eu saber se aquilo aconteceu mesmo.
mas eu não duvido que a dona antonieta fizesse aquilo por  culpa de minha mãe.